sexta-feira, 30 de novembro de 2007

TERRA DA GAROA





E o que dizer do privilégio de participar de um grupo tão exuberante, eclético e extremamente criativo como é o grupo literário “Terra da Garoa”? Fruto de um insight iluminado de Erick Monstavicius, o grupo tomou corpo e virou realidade. A simples possibilidade da troca, do convívio - ainda que virtual! - amealhando incontáveis e significativas experiências de cabeças tão diversas, já seria suficiente para garantir-lhe lugar de destaque nessa minha caminhada de vida. Junte-se a isso, por certo, a realização de um sonho. Afinal, dizem, uma pessoa, para entender-se completa, deve plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Por ironia, falta-me, talvez, o mais fácil, já que ainda não pude contribuir, efetivamente, com a saúde do planeta...
Juntos, lançamos dois livros.
O primeiro, “A Garoa que ninguém vê” (2005), é uma coletânea de poemas, com grande diversidade de estilos. – participei com o poema ELEGIA, já publicado neste blog. Como todo primeiro rebento, veio cercado de expectativas e de imprevistos. Sua própria concepção, da idéia ao produto final, vale, também, um livro. A maioria não se conhecia pessoalmente, os elos foram construídos pela internet. Tirei a foto, preparei, às cegas, o arquivo da capa, sempre com a aprovação dos demais participantes. Alguém sugeriu que fosse feito um poema conjunto para compô-la, sugestão prontamente atendida. Apesar dos percalços e dos sustos, ao ver o filho nascido, nada poderia ser tão gratificante! Naquele dia, estávamos – todos! – em estado de graça...
E veio o segundo livro, “Contos da Terra... Contos da Garoa” (2006). Nesse, resolvemos inovar e, da poesia, migramos para a prosa, ainda que o território, desconhecido de alguns, causasse certo temor. Quis ampliar um pouco mais a experiência, querendo não apenas escrever ou fazer a capa, mas participar de forma mais abrangente e, juntamente com a Juliana, ilustrei diversos contos nele inseridos.
E como foi bom conhecer todos eles!!! Altair Oliveira, Cris Nobre, Erick Monstavicius, Fabrizia Carrijo, Francisca de Lara, Julia Medrado, Juliana Perazzolo, Melissa B. Sliominas, Pedro Bala, Peu Ramos, Rubens Pereira e Xavier Zarco. Companheiros das letras... Companheiros da Garoa...
Foram dois livros. Foram dois partos conjuntos, em que todos, unidos, tornaram-se um. Foram dois lançamentos mágicos, alinhavados à distância, com maestria. Foram dois dias, de felicidade extrema, transbordante, que jamais sairão da minha memória.
Há um novo projeto. Quem sabe um romance, costurado pela mesma diversidade de mãos que trilharam esse caminho de sonho...

COTIDIANO



FADE IN

CENA 1. SALA. INT/EXT. NOITE
PAN da sala. Aderbal está sentado diante da TV, “esparramado” no sofá de 3 lugares,com os pés sobre uma mesinha de centro à frente, assistindo ao futebol, com uma garrafa de cerveja long neck numa das mãos. Edleuza está sentada no sofá de 2 lugares, fazendo tricô.

EDLEUZA
(sem desviar os olhos do tricô)
- Você tá me traindo?

MONTAGE SEQUENCE (NA FORMA DE FLASHES RÁPIDOS) : A) ADERBAL ABRAÇANDO UMA MULHER LOURA; B) ADERBAL TROCANDO BEIJOS APAIXONADOS COM A MESMA MULHER LOURA; C) ADERBAL NA CAMA COM A MULHER LOURA.

ADERBAL
(sem desviar os olhos da tv)
- Hein?
EDLEUZA
(ainda sem desviar os olhos do tricô)
- Você tá me traindo?
ADERBAL
- Como...?
EDLEUZA
- Você tá me traindo?
ADERBAL
- Eu?
EDLEUZA
(interrompendo o tricô e olhando para Aderbal)
- Uai, tem mais alguém nessa porcaria de sala?
ADERBAL
(olhando para os lados)
- Bem, Edleuza, que eu saiba, não...
EDLEUZA
- Então...?
ADERBAL
(empertigando-se na poltrona)
- Então o que?
EDLEUZA
- Você tá me traindo?

MONTAGE SEQUENCE (NA FORMA DE FLASHES RÁPIDOS. DIFERENTE DA SEQÜÊNCIA ANTERIOR) : A) ADERBAL ABRAÇANDO UMA MULHER MULATA; B) ADERBAL TROCANDO BEIJOS APAIXONADOS COM A MULHER MULATA; C) ADERBAL NA CAMA COM A MULHER MULATA.

ADERBAL
- Ainda não entendi aonde você quer chegar com essa história...
EDLEUZA
- É simples.
ADERBAL
- É?
EDLEUZA
- É sim... É simples.
ADERBAL
- Pois não ta parecendo...
EDLEUZA
- Mas é, caramba. É simples.
ADERBAL
- Então me explica...
EDLEUZA
- Eu só quero que você me diga sim ou não...
ADERBAL
- Sim ou não?
EDLEUZA
- É, Aderbal.
ADERBAL
- Tá bom. Sim ou não.
EDLEUZA
(fuzilando com o olhar)
- Engraçadinho você...
ADERBAL
- Ta bom. Sim ou não pra quê?
EDLEUZA
(irritada)
- Pra pergunta que eu fiz, diacho!
ADERBAL
- Que pergunta?
EDLEUZA
- Você tá me traindo?

MONTAGE SEQUENCE (IDEM): A) ADERBAL ABRAÇANDO UMA MULHER MORENA; B) ADERBAL TROCANDO BEIJOS APAIXONADOS A MULHER MORENA; C) ADERBAL NA CAMA COM A MULHER MORENA.

ADERBAL
- Ah, essa pergunta...

(Aderbal dá um longo e demorado gole na cerveja, recosta-se novamente na poltrona, desviando o olhar para a tv. Pausa longa. Silêncio.)

EDLEUZA
- Tô esperando...
ADERBAL
(voltando-se para Edleuza, enfastiado)
- Esperando o que?
EDLEUZA
- Você me responder, ora...
ADERBAL
- Responder o que, mulher de Deus?

Close de Aderbal. Close de Edleuza.

EDLEUZA
- Você tá me traindo?

MONTAGE SEQUENCE (IDEM): A) ADERBAL ABRAÇANDO UMA MULHER NISSEI; B) ADERBAL TROCANDO BEIJOS APAIXONADOS COM A MULHER NISSEI; C) ADERBAL NA CAMA COM A MULHER NISSEI.

ADERBAL
- Não...
EDLEUZA
(suspirando, após longa pausa)
- Então, tá...

MONTAGE SEQUENCE (IDEM): A) EDLEUZA, ABRAÇANDO UM HOMEM NEGRO; B) EDLEUZA TROCANDO BEIJOS APAIXONADOS COM UM HOMEM MUSCULOSO; C) EDLEUZA NA CAMA COM UM HOMEM LOURO.
Aderbal larga-se novamente na poltrona, voltando a assistir o futebol na tv e a beber despreocupadamente sua cerveja, enquanto Edleuza volta-se, tranqüilamente, ao tricô que antes fazia, com um pequeno – e disfarçado - sorriso estampado na face.

FADE OUT

*** FIM ***

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Ilustração de Bernadete Bittencourt . designer gráfica . bernadetebitten@uol.com.br



Todo mundo mascarado
Girando pelo salão,
Pé ante pé,
Saias rodadas,
Rendas barrocas,
Pernas de bailarina,
E as máscaras.

Vamos dançar,
Girar, rodar,
Dar voltas pelo ar,
Vamos dançar,
Chutar o mundo,
Fazer espirais,
Tirar as máscaras.

Por que não?
A música inspira,
Não importa a vida
Não importa o tempo,
Importa que dancemos
De mãos dadas
E corpos soltos...

Vamos dançar,
Por que não?
Se quiseres dançar
Assim, mascarada,
Dancemos assim,
Pelo salão,
Com as máscaras

na mão...

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

XAVIER ZARCO


Por certo, em alguns momentos – talvez nem sejam tão raros! – somos tomados por uma avassaladora inveja de textos alheios, como se deles quiséssemos usurpar a autoria, transformando-os em pedaços de nós mesmos, rebentos extemporâneos daquele brilho de imaginação que, por algum inexplicável motivo do qual não nos apercebemos, foge-nos naquele exato instante em que pretendíamos – oh, doce inocência! – coagulá-los na virgem folha de papel...
Uma inveja saudável, creio eu. Afinal, na medida em que reconhecemos no texto do outro valores que gostaríamos fossem nossos, tal fato, de alguma maneira, servirá como força motriz ensejadora de uma busca incansável da superação daquilo que entendemos, no momento, como limite. Ora, se o outro fez, também podemos fazer, não é lógico?
Nem sempre. Mas não há como negar que funciona inequivocamente como mola propulsora da imaginação e, quando bem trabalhada, pode gerar belos frutos...
Devo confessar que sou tomado, inteiramente, por essa sensação ao ler a poesia e a prosa de Xavier Zarco. E, confesso, não há como não sê-lo, uma vez que, na integralidade do seu texto, paira uma perfeição orgânica, viva, pulsante, que se recria e se avoluma em cada palavra que, volátil, ganha vestimenta diversa, variando conforme sopram os ventos imantados de suas metáforas iluminadas... Há, sem dúvida alguma, um liame mágico entre o autor e aquele que o compartilha, gerando vasta energia criadora que se espraia e transpassa o brilho do que se pretendeu, revelando uma diversidade de caminhos que, antes, cegos e insensíveis, não havíamos tido a oportunidade de experimentar. Um fruto que, apesar da aparência indevassável, mostra-se extremamente suculento...
Causa-me assombro tamanha produção! Incessante, viril, devastadoramente bela. É como se ele próprio fosse feito das palavras que reinventa, um ser etéreo amalgamado em poesia, que exala e transpira encantamento e que reveste o papel, antes límpido e sem graça, com a suavidade delirante da criação literária...
Tive o prazer e a honra de guarnecer seus versos com meus traços amadores, porém esforçados. Na verdade, nem conseguia imaginar que minhas ilustrações pudessem, algum dia, atravessar o oceano como imagens decompostas em bits navegando por cabos óticos, em ondas faiscantes... Algo tão louco e, na mesma medida, instigante.
O primeiro deles foi o delicado “O Guardador da Águas”, Prêmio de Poesia Vítor Matos e Sá - 2004, organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O convite, inesperado, foi-me feito por Xavier Zarco através de e-mail – bendita tecnologia! – e aceito de pronto, no que pese aquele friozinho na espinha que sentimos quando mergulhamos em algo desconhecido. E, de fato, ilustrar a capa de um livro premiado de um poeta d´além mar era vôo que jamais havia pensado alçar...
Depois surgiu o convite para “O Livro do Regresso” (Prémio de Poesia Raúl de Carvalho - 2005, promovido pela Câmara Municipal do Alvito). Esse ainda ficará em suspense... E, por fim, “Variações sobre tema de Vítor Matos e Sá: Invenção de Eros”, que foi distinguido com o Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá - 2007, certame organizado pelo Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Tentei dar, em todos eles, na medida das minhas possibilidades, as cores e a forma que imaginei ao penetrar no mundo do poeta. Deparei-me, nessa viagem, com um universo fantástico, onde as palavras – todas elas! – restam impregnadas de significados novos e surpreendentes. Palavras que, justapostas na medida certa, trazem a esperança de que tudo AINDA pode dar certo e que essa é uma vida que – felizmente e com poesia! - vale a pena ser vivida...


segunda-feira, 12 de novembro de 2007

APPLE TRIP

There are more things in heaven and earth, Horatio,
that are dreams of than in your philosophy
WILLIAM SHAKESPEARE




Maldito carro! Virei a chave na ignição, novamente. Tentei uma vez, duas – acho mesmo que já perdi a conta! - e o motor, sem perceber meu ódio crescente, sequer deu sinal de vida. Perdido ali, naquela auto-estrada no meio do nada, rodeado por quilômetros de árvores gigantescas, apoiei minha cabeça no volante, desanimado. Parecia, até, que já ouvia os comentários. “Eu não disse? Sabia que Douglas se atrasaria. Uma reunião tão importante e ele nem dá satisfação! Ele não tem mesmo o talento do pai, tão necessário para levar essa empresa adiante...” Sabia que estava rodeado de víboras. O mundo empresarial não é nenhum jardim de infância e eu bem sabia disso quando resolvi fazer parte dele. Mas ser traído, assim, por um carro recém saído da concessionária era o cúmulo! E sabia que eles se aproveitariam disso...
Por um momento, extremamente breve, pensei que o motor tivesse funcionado. Doce ilusão! Deve ter sido o vento, movimentando um pouco dessa paisagem melancólica – uma reta enorme, esquecida no mundo, rasgando a mata, em que não se vê o ponto de saída, tampouco o de chegada. Pelas minguadas réstias de luz que, heroicamente, atravessam os galhos, percebo o sol a pino e tento reorganizar minhas idéias.
A reunião com o “staff” da filial fora marcada por mim. Os índices de crescimento desaceleraram e achei, por bem, que era hora de intervir, para que as coisas voltassem ao normal, dentro do padrão esperado. No último momento, por algum pressentimento bobo, desses que a gente tem e não entende, resolvi desistir do vôo e, como já havia feito uma programação com folga, decidi viajar de carro, sozinho, longe do restante da diretoria, que seguiu viagem no avião fretado. Assim, teria tempo suficiente para traçar minha estratégia para vencer as resistências que, nos últimos tempos, começaram a contaminar o ambiente das empresas do grupo.
Acordei hoje de bom humor. Era bem cedinho quando saí do hotel e coloquei o carro novamente na estrada. Era o segundo dia de viagem e, inconscientemente, na maior parte dela, meu pé ficara cravado, bem fundo, no acelerador. Se tudo corresse bem – e eu não admitia outra hipótese! – chegaria lá na hora marcada, com tempo, ainda, para um cafezinho...
Mas as coisas não se deram com haviam sido previstas. Depois do último posto de abastecimento, alguns – muitos! - quilômetros atrás, o motor começou a ratear, não querendo responder como, até então, havia feito. E quanto mais ele engasgava, mais eu insistia em provocá-lo, pisando repetidas vezes no acelerador. Vai, desgraçado! Pisava com raiva. Muita raiva. Nem pense em parar aqui, sua lata velha! De novo. Mando você para o ferro-velho e faço questão de vê-lo triturado, aos poucos, lentamente... E de novo. E quanto mais nervoso ficava, e quanto mais insistia, menos força o carro demonstrava.
Até que ele, de repente, deu um último e prolongado suspiro, desses que duram eternidades, e parou ali mesmo, naquele fim de mundo.
Não é justo que isso esteja acontecendo comigo! Sempre prezei a máxima de que “tempo é dinheiro” e sempre – sempre! – o fiz trabalhar para mim. Hora marcada é lei e regra é regra, não se quebra por nada. Quando alguém se atrasava, dentro dos horários que eu estabelecia, rapidamente era desqualificado e muitos funcionários, muitos mesmo, foram despedidos por causa disso. Sempre fui inflexível quando o assunto era o tempo... “Mas, patrão, eu não tive culpa, o trânsito estava congestionado”. Não tem desculpa. “Minha mulher entrou em trabalho de parto e eu a levei para o hospital...”
Não importa. Não há quem me faça ver de forma diferente.
E agora era eu quem estava atrasado para o horário que eu mesmo havia marcado... Que ironia! Não conseguia acreditar que estava passando por isso e, sem pensar, dava-me, reiteradamente, tapas no rosto, punindo-me por não ter permanecido junto ao grupo, por ter dado ouvidos àquela intuição que, diga-se de passagem, mostrou-se - pela primeira vez! - equivocada.
Fechei os olhos, segurei a chave na ignição enquanto, mentalmente, pedia ajuda para alguma entidade metafísica, para que ela se compadecesse do meu infortúnio. Olhei para a pequena medalhinha em forma de coração presa no retrovisor, presente dado por alguma amante sem nome que, não sei bem por qual motivo, decidi preservar. Fiz uma última e desesperada tentativa.
Nem sinal.
Saí do carro, batendo a porta, violentamente. Agarrei meu aparelho celular e, sem nenhuma surpresa, percebi que estava completamente sem serviço. Também pudera! Naquele fim de mundo era difícil imaginar que houvessem antenas espalhadas por aquela imensidão desolada. Droga! Para que serve a tecnologia se ela não funciona quando a gente precisa? Andei de um lado para o outro, me contorcendo atrás de qualquer coisa que ressuscitasse meu telefone e o conectasse de volta à civilização. Mas, por mais que tentasse, tal qual meu carro, ele permanecia apenas como a lembrança daquilo que foi um dia...
Num acesso incontrolável, vi-me esbofeteando a lataria e, aos poucos, o vermelho impecável e reluzente deu lugar a uma tonalidade fosca e embaçada. Após um tempo, exausto, desabei. O que faço agora? Pensava na reunião e no escárnio das pessoas, ao constatar minha ausência. “Que moral ele tem para nos repreender sobre atrasos ou coisa parecida?” “Pois é, ele ainda não apareceu. Eu não disse?” “Pobre Douglas, não tem a mínima competência para ser o presidente das empresas! Eu tinha certeza de que ele não apareceria...” “Quantas pessoas ele não mandou embora por muito menos?” É verdade. É verdade e não posso negar. Mandei muitos empregados para o olho da rua por atrasos ínfimos, não dando qualquer chance de defesa. Fiz disso uma lei maior e, sem querer, eu a estava violando. Sentia-me estuprador de meus próprios conceitos...
De repente, observei um movimento na estrada, algo além das folhas secas sendo levadas pelo vento insistente. Esfreguei meus olhos, tentando desvencilhar-me da poeira que me impedia de ver com clareza. Aos poucos, a pequena mancha foi tomando forma e o que antes era um vulto transformou-se numa pessoa. Quando, finalmente, compreendi o que se passava, percebi uma velha, carcomida pelo tempo, envolta em panos rotos, tão envelhecidos quanto ela, caminhando lentamente na minha direção.
- Posso lhe ajudar em algo, meu filho? – perguntou, com a voz trêmula, denotando idade avançada.
Por alguns instantes, permaneci imóvel, ainda sob o impacto da presença de alguém ali, no meio do nada. Aos poucos, fui me refazendo do susto, tentando, ao mesmo tempo, encontrar palavras para dizer-lhe algo, interrompendo aquele silêncio que começava a incomodar.
- Por acaso a senhora teria um telefone que eu pudesse usar? Meu carro... Esse desgraçado parou de repente e...
- Tenho sim. Quer vir comigo?
Pensei: ir para onde? Por maior boa vontade que tivesse, ainda que acreditasse em Papai Noel ou bicho papão, era difícil conceber que alguém pudesse morar ali, tão distante de qualquer cidade, esquecida entre árvores e poeira... No entanto, a figura peculiar que se apresentava à minha frente era tão improvável, tão absolutamente improvável, que aquela impossibilidade virtual transformava-se, subitamente, numa possibilidade factual. Não pude, então, contestar. Estava além das minhas forças.
- Claro... – assenti.
Entramos pela mata fechada, por um caminho que não se percebe. Eu ia acompanhando os passos da velha, desviando dos inúmeros obstáculos, sob os olhares de uma coruja extemporânea – afinal, ainda não era noite e, pelo que me constava, era somente aí que elas apareciam. Depois de algum tempo - e alguns múltiplos arranhões! - abriu-se uma pequena clareira e vi-me diante de um pequeno casebre. Ela colocou-se próximo à porta, abrindo-a e convidando-me para entrar.
Por um momento, titubeei, como se não estivesse bem certo se era o melhor a ser feito. Porém, vi que não havia alternativa que pudesse me colocar para fora daquele lugar senão conseguir falar ao telefone – embora, pelas aparências, me fosse difícil acreditar que ali existisse um aparelho. E mais, um aparelho funcionando.
- Sinta-se em casa! Ela é simples, mas tem espaço para abrigar todo mundo...
- Gostaria apenas de telefonar, se possível. Não quero tomar muito do seu tempo.
- Tempo? Mas não é você quem acha que tempo é dinheiro?
Fiquei imóvel e em silêncio. Como poderia aquela velha, curvada pelo peso da idade, saber algo de mim? Rapidamente, tentava processar os dados em meu cérebro cansado, tão acostumado estava em transformar a vida em números e os fatos em palavras, matematicamente alinhadas nas folhas dos relatórios e balancetes das empresas. Não havia possibilidade, a menor que fosse, de que ela pudesse saber sobre mim ou sobre minha vida. Se eu achava que tempo é dinheiro isso é uma coisa só minha e de mais ninguém.
- Como assim? O que quer dizer com isso? – perguntei, demonstrando uma ponta de irritação.
- Sente-se, meu jovem. Não tenha pressa... - apanhou algo encoberto por um pano que estava sobre a mesa – Tenho, ainda, algo a lhe dizer...
Ela retirou o pano, revelando um fruto. Uma maçã, provavelmente o mais belo exemplar que já havia visto! Era grande, muito grande... Tinha a casca, de um vermelho intenso, sem qualquer imperfeição e gotículas brilhantes brotavam em sua superfície, quase como se fosse o frescor da pele de uma mulher, imantada, transpirando desejo por todos os poros. Minha boca, num ato reflexo, encheu-se d´água, querendo sentir o gosto daquele pecado...
Ela estendeu a mão, oferecendo-me. Agarrei a maçã e, sem pensar no que fazia, delicadamente, levei-a, de olhos fechados, até bem próximo de meu rosto. Com todos os sentidos, um após o outro, experimentei-a... Uma sensação indescritível foi tomando conta de mim, um formigamento em todo o corpo, um calor extremado...
A velha, então, dirigiu-se, lentamente, até um pequeno e empoeirado móvel de madeira e, do fundo dele, retirou o que parecia ser uma bola de cristal e a trouxe até próximo de mim, depositando-a sobre a mesa. Mas... Como? Tentei argumentar. Porém, encontrava-me em estado de torpor, não só pela experiência inusitada que havia tido com aquele fruto escarlate, mas, também, hipnotizado pelo brilho que vinha daquele estranho objeto.
- Não tente entender, pois muitas coisas estão além de qualquer entendimento! – continuou, com um pequeno sorriso no canto da boca enrugada – Apenas ouça as previsões que tenho para sua vida e saiba tomar a decisão correta...
Sentei-me à mesa. Ou melhor, meu corpo, aparentemente liquefeito, simplesmente, se desmontou... A cadeira parecia atrair-me o tempo inteiro, como se quisesse tornar-me parte dela.
A velha começou a falar sobre mim como se eu próprio o fizesse, desenterrando inúmeras lembranças há muito esquecidas, remexendo nas folhas soltas do meu pensamento, dissecando minha vida como se fosse um cadáver ainda quente numa tábua de anatomia. Toda a minha história, página por página... Era impossível! Mas estava acontecendo, ali, agora. Meus desastrados casos de amor, minha inabilidade para captar amigos... Ela ia, calmamente, dizendo tudo e, ao mesmo tempo, criando cadeias, como elos de corrente unidos, projetados para o futuro. Um acontecimento interferindo em outro, e em outro, e em outro...
De repente, ela se calou por alguns momentos e permaneceu imóvel, com as mãos sobre a bola de cristal, acariciando-a pacientemente. Eu tentava, de todas as formas, digerir aquilo que se passava diante de mim, quando aquela cantiga modorrenta sobre minha vida reiniciou. Falava, agora, sobre arrogância e tirania, das vidas que destruí, das inimizades que cultivei e no quanto isso interferirá mais adiante. Meu Deus, como podia suportar tamanha ousadia? Com quem aquela velha encarquilhada pensava estar falando? Dizer aquilo tudo que dizia, agora, de mim, impunemente... Como era possível?
- Acho que basta, não? – interrompi as previsões, levantando-me abruptamente.
- O que lhe incomoda? A verdade...?
- Não tenho mais tempo a perder aqui... Queria apenas utilizar o telefone e não ficar ouvindo esse monte de baboseiras a meu respeito!
- Tenha calma, ainda não acabou...
- Claro que acabou! Não preciso ficar aqui sendo insultado por alguém que nem conheço! – meu tom de voz era alto e áspero. Caminhei, resoluto, em direção à porta.
- Você é quem decide sobre seu futuro... - ela ergueu as mãos e, de olhos fechados, entoou algum cântico indecifrável - Você teve a chance de mudar e entender seus erros mas, pelo jeito, não aproveitou. Continua achando que tempo é dinheiro e que você está sempre acima de tudo, não? Pois bem... Terá que aprender de novo...
Já estava ficando de saco cheio de tudo aqui! Ainda ia dizer algo, mas desisti. Agarrei, firmemente, a maçaneta.
Um flash.
Um relâmpago.
Inexplicavelmente, percebi um intenso facho de luz que saía de mim, atravessando a bola de cristal para, finalmente, atingir a velha em cheio, no coração. Ela se contorcia envolta num halo incandescente que a transformava numa figura disforme e volátil. Enquanto suas histéricas gargalhadas devassavam o espaço, tive a impressão de que as rugas de seu rosto iam, aos poucos, desaparecendo. Tempo não é dinheiro... Entre um estrondo e outro, pude ouvi-la, com nitidez. Tempo é vida... Tempo é vida... Assustado, em pânico, saí do casebre, que parecia transformar-se numa supernova errante.
Cambaleante, abri caminho pela mata – estranhamente muito mais alta do que quando passei por ali algum tempo antes. Tentava encontrar a estrada, encontrar meu carro, algo que me lembrasse os motivos que me levaram até aquela situação inusitada. Sentia-me cansado, como se carregasse o mundo nos ombros. Passei as mãos pelo meu rosto, para retirar o suor caudaloso que escorria, embaçando-me a visão e percebi, no tato, minha pele flácida. Imediatamente, levei as mãos à cabeça e, horrorizado, percebi que elas arrancaram, sem qualquer dificuldade, tufos de cabelo branco. Meus Deus! O que está acontecendo? O que, diabos, está acontecendo?
Alcancei a estrada. O matagal cobria todo o acostamento, avançando sobre o asfalto. Cadê meu carro? Fui caminhando, completamente perdido. Todos os lugares daquela reta eram semelhantes. Mas eu tinha certeza de que não estava assim, tão distante. Mais alguns passos. De repente, vi algo mais ao longe. Um carro! Com o resto das forças que sobraram, apertei o passo. Percebi, porém, que não poderia ser o meu... Não, definitivamente não poderia ser ele. Uma lataria apodrecida, coberta de limo, sem motor, volante ou banco. Cheguei até ele. Não...! Dei um grito, que ecoou pelo vazio. Estarrecido, vi, através do vidro quebrado, a medalhinha – a mesma para a qual havia recorrido! - presa no retrovisor.
Praticamente, arranquei a porta fora. Entrei naquilo que, algum dia, foi um veículo, e procurei mirar-me no espelho. Com alguma dificuldade, utilizando-me da manga da camisa – ou, pelo menos, o que antes era a manga da camisa e agora parecia um trapo velho e amarelado – consegui limpá-lo. Olhei-me. Não me reconheci. Devia ter, pelo menos, dez anos a mais...
De repente, fui invadido pela lembrança das palavras daquela velha em chamas... Tempo não é dinheiro. Tempo é vida... A conclusão era óbvia. Ela havia me roubado o tempo. Ela havia me roubado a vida...
Como se fosse um recém-nascido, ainda preso à placenta, mexi meus braços, estiquei minhas pernas, emiti um doloroso choro de vida e, sem entender, saí do carro, sabendo que teria que recomeçar. Caminhei pela estrada, ainda sem direção, sob uma garoa fina e insistente.
Sabia, apenas, que seria uma longa caminhada.

Tua presença é luz dentro dessa noite interminável... É o caminho sem marcas, sem pedras ou granizos, de rosas sem espinhos. É o mar sem sangue, sem morte, sem nada. É a direção sem rota prévia, um acúmulo de sentidos sem sentido real, é um sonoro gemido, um sussurro na garganta inesgotável...

sábado, 10 de novembro de 2007

INVENTÁRIO



Como guerrilheiro vencido, desabo na solidão extenuante dessa sala vazia.
Nesse deserto, empoeirado, árido e escuro, pedaços apodrecidos de mim vão ficando pelo caminho,
pedaços de carne putrefata, do sangue enegrecido, do cérebro liquefeito.
Vou pesando minha vida e sabendo dos erros que não sabia...
Com a lâmina bem afiada, d´alguma dessas espadas de samurai,
vou provocando incisões, enquanto pipocam bombas atômicas pelo campo de batalha...
Não faço versos curtos, não faço hai-kais. Ao contrário, estico a dor
pela quilométrica extensão das palavras coaguladas...
Entre pedaços e migalhas, tento ser o que não fui, tornar reta minha curva imperfeita,
e percebo que, nestas tantas guerras, aprisionei carinho, omiti afeto.
Fui tão duro, tão seco, tão cheio de mim!..
Agora, enquanto me desfaço no chão engordurado, estatelado e sozinho
antes de tudo percebo, no amor assassinado:
Perdi a batalha, foi-se a guerra... Tudo acabado, enfim.

ELEGIA

Poetas, quantos sejam, escutai meu desespero!
Tomai de meus versos esse fio de angústia que lhe desce obscuro do centro de tudo
E ulcerai com ele essa pútrida carne que me envolve!
Poetas, quantos existam, erguei minha fronte pálida por sobre a tormenta
Guiai meu desespero para além das estrelas e desesperai comigo!...
Não sou Vinícius
Nem sou morais
Não sou aquele poeta que carrega consigo a extrema originalidade,
Que transforma o mundo no ponto final de alguma frase derradeira,
Não tenho rosto de poeta, mãos de poeta, boca de poeta,
Não tenho estômago de poeta para suportar essa poesia nossa de cada dia,
Essa poesia amarga, rota, lamacenta...
E, de repente,
Nada além que de repente,
Surpreendo-me desesperado compondo uma elegia trágica.

E em meio ao meu desespero
Vejo-me largado em uma praia deserta, de areia fina e branca,
Sob um imenso luar prateado,
As ondas fervilhando, um doce cheiro de maresia penetrando-me
Todos os poros, em cada centímetro de pele.
Então, penso na gente, minha amiga.
Esqueço de tudo e penso na gente.
O mundo se acaba, e continuo pensando na gente.

Que venham os velhos e sua larga vida, enlameados na solidão de já terem passado;
Que venham as menininhas virgens, aquelas inocentes, e sua maliciosa ansiedade;
Que venham as criancinhas, o poeta algum dia já disse: o mundo é inteirinho delas!
Que venham animais e insetos, e flores e terra, e fogo e ar;
Que venham os cometas e sua cauda de desesperança, vitrificada;
Que venha o tudo e que venha o nada, enquanto apostamos
No que fica perdido no meio;
Que venham casas, coisas, homens, e a bomba atômica para destruí-los;
Ainda que tudo aconteça, continuo deitado na praia pensando na gente,
Pensando n’algum modo diferente de escrever poesia.

E escrevo, minha amiga.
Por quantas vezes me pesem toneladas de desencantos, eu escrevo.
Por quantas vezes me atormente o vazio das esquinas, eu escrevo.
Por quantas vezes me intoxique o ar estagnado das igrejas, ainda assim, escrevo.

Escrevo, e sei que não devo esperar que dessas minhas mãos sujas
De sangue saltem versos psicodélicos, lindos, menstruais,
Que rasguem o mundo,
Que interrompam guerras,
Que provoquem a paz.
Não serão apenas olhos petrificados, perdidos dentro de suas órbitas,
Estes súbitos olhos calcificados, olhos humanos carbonatados;
Não serão apenas corpos poluídos, carnes putrefatas, estômagos corroídos,
Estes corpos decadentes, bípedes, loucos, descerebrados;
Não serão apenas as mãos em toque de morte, cabalísticas,
Estas mãos descerrando mortalhas, que me tornarão poeta de todos:
Quero ser apenas teu poeta, minha amiga...
Quero criar-me de teu ventre,
Engolir-me por tua boca,
Conversar de estrelas enquanto o mundo se explode,
Deitado na praia, sob um imenso luar prateado.
Preso nesta carcaça, não consigo expandir-me.
Espio tudo, escondido em mim.
Ouço os gritos da fome, olhares hitlerianos passeiam pelas calçadas,
Buscando algum fio de angústia perdido no ar;
Ouço os lamentos da América,
Os mares engolindo as descargas humanas,
Os homens fugindo de encontro a Deus!
(Ah, essa hipocondríaca idéia do fim, que gera Deus como um novo início!)
Olho tudo pelo orifício dos meus olhos.
Sinto o cheiro podre da morte,
Os corpos queimando, empilhados em fogueiras,
Mulheres violentadas por seus doces fantasmas.

E eu canto, minha amiga.
A vida se acaba, e assovio La Traviata.
Os homens se matam, os homens se castram, e continuo, minha amiga, cantando.

Não, certamente não serão apenas deles esta toxidade inerte,
Esta chuva ácida que destrói a terra,
Este esgoto que avassala as ruas;
Não serão deles, destes tolos exangues, essa poeira radiativa que te come o cérebro,
Que te mata a cria, que te cega ao mundo,
Essa nuvem negra de vírus mortais... Não será apenas deles, destes tais,
Que te povoam e te sacrificam, a culpa pelo teu fim.

Mas que me importa tudo isso?Que importa de quem são os ombros que carregam o mundo,
De quem são as mãos que assinam decretos,
Que apertam os botões que destroem o planeta,

De quem são os gritos,
De quem são os risos,
Que importa?

Apenas a areia dessa praia é tudo.
Apenas o tudo dessa areia é mundo.

Ah, poetas, virai as costas para mim, e eu vos perdôo.
Não guardo a mágoa suicida dos desesperados,
Não vos quero ver vomitando a morte, carcomidos pelos vermes,
Com poesias gastas apodrecendo nas caixas cranianas, entre meio e médio occiptal,
Homens de fuselagens retorcidas, insípidos...
Não, não vos quero mal, poetas, apenas peço que vos esqueçais de mim!

Esqueçam de mim, poetas do Universo!

Dê-me as mãos, minha amiga.
Suspire o mais fundo, e dê-me as mãos.
Que tudo se acabe, voemos daqui!
E de asas abertas, mãos dadas, enfim, que se dane o resto!
Subamos a oito, nove, dez mil metros,
Giremos centenas de vezes, milhares talvez,
Como se fosse, então, a virgindade perdida, deitados no cimento frio,
Recriemos o mundo pela segunda vez!


Diria sim,
Que tenho meus versos encharcados de um romantismo passadista,
De melancolia ultrapassada, deixada no fundo da gente.
Se escrevo, sonho. Se sonho, vivo. Se vivo, me esqueço
E perco, aos poucos, a espontânea originalidade do mármore.
Não sei ser frio, tampouco escrever sobre icebergs flutuantes
Mas, se escrevo sobre solidão, se meu amor é minha última poesia,
Por certo meus versos serão sempre banhados em amor...
Passadista, ultrapassado, mas amor.
Esquisito, melancólico, mas unicamente amor.
Se encharco, então, se afogo, prendo, acorrento
Todos os meus - incontáveis! - versos nesse romantismo
É porque sou um romântico alagado de saudade.


E há sempre uma pontinha de saudade em cada poema...