sábado, 10 de novembro de 2007

ELEGIA

Poetas, quantos sejam, escutai meu desespero!
Tomai de meus versos esse fio de angústia que lhe desce obscuro do centro de tudo
E ulcerai com ele essa pútrida carne que me envolve!
Poetas, quantos existam, erguei minha fronte pálida por sobre a tormenta
Guiai meu desespero para além das estrelas e desesperai comigo!...
Não sou Vinícius
Nem sou morais
Não sou aquele poeta que carrega consigo a extrema originalidade,
Que transforma o mundo no ponto final de alguma frase derradeira,
Não tenho rosto de poeta, mãos de poeta, boca de poeta,
Não tenho estômago de poeta para suportar essa poesia nossa de cada dia,
Essa poesia amarga, rota, lamacenta...
E, de repente,
Nada além que de repente,
Surpreendo-me desesperado compondo uma elegia trágica.

E em meio ao meu desespero
Vejo-me largado em uma praia deserta, de areia fina e branca,
Sob um imenso luar prateado,
As ondas fervilhando, um doce cheiro de maresia penetrando-me
Todos os poros, em cada centímetro de pele.
Então, penso na gente, minha amiga.
Esqueço de tudo e penso na gente.
O mundo se acaba, e continuo pensando na gente.

Que venham os velhos e sua larga vida, enlameados na solidão de já terem passado;
Que venham as menininhas virgens, aquelas inocentes, e sua maliciosa ansiedade;
Que venham as criancinhas, o poeta algum dia já disse: o mundo é inteirinho delas!
Que venham animais e insetos, e flores e terra, e fogo e ar;
Que venham os cometas e sua cauda de desesperança, vitrificada;
Que venha o tudo e que venha o nada, enquanto apostamos
No que fica perdido no meio;
Que venham casas, coisas, homens, e a bomba atômica para destruí-los;
Ainda que tudo aconteça, continuo deitado na praia pensando na gente,
Pensando n’algum modo diferente de escrever poesia.

E escrevo, minha amiga.
Por quantas vezes me pesem toneladas de desencantos, eu escrevo.
Por quantas vezes me atormente o vazio das esquinas, eu escrevo.
Por quantas vezes me intoxique o ar estagnado das igrejas, ainda assim, escrevo.

Escrevo, e sei que não devo esperar que dessas minhas mãos sujas
De sangue saltem versos psicodélicos, lindos, menstruais,
Que rasguem o mundo,
Que interrompam guerras,
Que provoquem a paz.
Não serão apenas olhos petrificados, perdidos dentro de suas órbitas,
Estes súbitos olhos calcificados, olhos humanos carbonatados;
Não serão apenas corpos poluídos, carnes putrefatas, estômagos corroídos,
Estes corpos decadentes, bípedes, loucos, descerebrados;
Não serão apenas as mãos em toque de morte, cabalísticas,
Estas mãos descerrando mortalhas, que me tornarão poeta de todos:
Quero ser apenas teu poeta, minha amiga...
Quero criar-me de teu ventre,
Engolir-me por tua boca,
Conversar de estrelas enquanto o mundo se explode,
Deitado na praia, sob um imenso luar prateado.
Preso nesta carcaça, não consigo expandir-me.
Espio tudo, escondido em mim.
Ouço os gritos da fome, olhares hitlerianos passeiam pelas calçadas,
Buscando algum fio de angústia perdido no ar;
Ouço os lamentos da América,
Os mares engolindo as descargas humanas,
Os homens fugindo de encontro a Deus!
(Ah, essa hipocondríaca idéia do fim, que gera Deus como um novo início!)
Olho tudo pelo orifício dos meus olhos.
Sinto o cheiro podre da morte,
Os corpos queimando, empilhados em fogueiras,
Mulheres violentadas por seus doces fantasmas.

E eu canto, minha amiga.
A vida se acaba, e assovio La Traviata.
Os homens se matam, os homens se castram, e continuo, minha amiga, cantando.

Não, certamente não serão apenas deles esta toxidade inerte,
Esta chuva ácida que destrói a terra,
Este esgoto que avassala as ruas;
Não serão deles, destes tolos exangues, essa poeira radiativa que te come o cérebro,
Que te mata a cria, que te cega ao mundo,
Essa nuvem negra de vírus mortais... Não será apenas deles, destes tais,
Que te povoam e te sacrificam, a culpa pelo teu fim.

Mas que me importa tudo isso?Que importa de quem são os ombros que carregam o mundo,
De quem são as mãos que assinam decretos,
Que apertam os botões que destroem o planeta,

De quem são os gritos,
De quem são os risos,
Que importa?

Apenas a areia dessa praia é tudo.
Apenas o tudo dessa areia é mundo.

Ah, poetas, virai as costas para mim, e eu vos perdôo.
Não guardo a mágoa suicida dos desesperados,
Não vos quero ver vomitando a morte, carcomidos pelos vermes,
Com poesias gastas apodrecendo nas caixas cranianas, entre meio e médio occiptal,
Homens de fuselagens retorcidas, insípidos...
Não, não vos quero mal, poetas, apenas peço que vos esqueçais de mim!

Esqueçam de mim, poetas do Universo!

Dê-me as mãos, minha amiga.
Suspire o mais fundo, e dê-me as mãos.
Que tudo se acabe, voemos daqui!
E de asas abertas, mãos dadas, enfim, que se dane o resto!
Subamos a oito, nove, dez mil metros,
Giremos centenas de vezes, milhares talvez,
Como se fosse, então, a virgindade perdida, deitados no cimento frio,
Recriemos o mundo pela segunda vez!

Nenhum comentário: