sexta-feira, 26 de outubro de 2007

ESCREVER A PAZ

Como escrever a paz? Talvez, estabelecendo a perspectiva de que ela se traduziria na indivisível dualidade da moeda: se, de um lado, uma cara sorridente se abre, inteira, às intermináveis investidas do hermeneuta, do outro a coroa, sisuda, descortina toda a dificuldade da conceituação. A pomba branca já não traz no vôo delicado a simplicidade de asas batendo, mas a inteireza de um intrincado organismo, que desce aos meandros subatômicos, a detalhes que não se percebem, ao encaixe da pena na pele, à contração das fibras musculares...
Essa é a missão – às vezes, ingrata, outras tantas, instigante - que se coloca e que, por hora, se aceita. De repente, não seria assim tão difícil proceder a essa análise se o ser humano, na sua arrogante prepotência – ou seria, ignorância? - não complicasse de forma tão evidente ou se suas ações, porventura, demonstrassem, ainda que de maneira sutil ou inesperada, uma coerência matemática. Mas o homem age com a imprevisibilidade daquilo que não se espera, onde são fatídicas quaisquer assertivas. Simplesmente, dentro desse contexto humano, não existe dois-mais-dois-igual-a-quatro...
Tento, então, estabelecer algum paralelo entre o que foi, o que é e o que será, e me surpreendo em digressões que ruborizariam até mesmo os filósofos da antiga Grécia. Ora, imagino que, nascidos do acaso, estabeleceríamos um primeiro contato com o semelhante, ambos ainda no mesmo patamar, a paz originária atuando de maneira uniforme e equânime. Porém, aquilo que parecia ser o sistema perfeito, desintegra-se, como o átomo que, antes unido e inseparável, é quebrado pela ação do homem – não por mera correlação de causa e efeito, origina-se aí a bomba atômica...
Essa distorção deu-se no início, quando alguém quis mais que o outro. Foi como se aquela ave, que preludiava um lindo e iluminado vôo fosse atingida, em cheio, por alguma dessas incontáveis balas perdidas que povoam nossa realidade e que, morta, despencasse, caindo estatelada no asfalto carcomido.
A paz, então, deixa de ser a corrente e torna-se apenas o elo. E o elo é apenas um, depende de outros para tornar-se inteiro. E aí reside o grande dilema: enquanto parte da humanidade vislumbra a paz como aquele lado sisudo e mal-humorado da moeda, e não encontram explicações convincentes, claras, retilíneas, sobre sua origem e amplitude, teorizam sobremaneira, confundindo, enrolando, dando nós insolúveis, construindo uma doutrina hermética e insustentável - e, conseqüentemente, não a atingem nunca!- existem milhares de pessoas que, como eu, entendem a paz como a face sorridente da moeda, presente em cada sorriso espalhado por essa enorme aldeia, em cada gesto espontâneo de carinho, no olhar amigo, solidário, no diálogo sem exasperação, na suavidade do ombro que acolhe e da mão que afaga, nas balas de canhão que se transformam em sementes germinando amor no solo desgastado...
Devemos, sim, não apenas escrever a paz, mas vivenciá-la, apreendendo toda a sua simplicidade, como se fizéssemos um retorno imaginário àquele momento em que se quebrou a corrente para, de novo, como elos renascidos, novamente juntos, redesenhar, nos céus, o vôo leve e despretensioso daquela pomba branca no cair da tarde...

Um comentário:

Unknown disse...

É isso mesmo, Camarada, há que vivê-la e fazer com que de facto ela seja quase doença contagiosa.

A Paz é um bem precioso (bem sei, só se sabe o que é quando se conhece o oposto, mas explicar não custa).

Há que erguê-la à condição de urgência.

Um abraço

Xavier Zarco